Estou no Douro, Portugal, uma névoa forte cobre o vale.
– Veio do norte da África – diz a recepcionista da vinícola que iríamos visitar. – Temos que ter muito cuidado e usar máscaras de proteção porque, segundo o que ouvi dizer, a nuvem está carregada de agentes químicos prejudiciais à saúde.
Pergunto se não seria apenas uma tempestade de areia do deserto.
– Sim, mas como veio da África é preciso cuidado redobrado, não podemos vacilar.
– Que tipo de testes fizeram nessa poeira para chegar a essa conclusão?
– Não sei, senhora, só estou a relatar o que ouvi.
Lembrei na hora de uma frase de Montaigne: “A palavra é metade de quem a pronuncia, metade de quem a escuta”. Sem dar respiro, disparei:
– Essa suposição é um tanto racista, não acha?
A moça ficou sem graça, mas continuou na linha da asneira.
– Foi apenas o que eu ouvi. Não ouvi mais nada – como se isso a redimisse de qualquer responsabilidade.
Pensei nas fake news e no estrago que elas causam, se espalhando mais rapidamente que o vento empoeirado do deserto.
Fiquei indignada. Aposto que se a poeira viesse da Suíça faria bem à pele.
Na volta da vinícola enquanto o carro ziguezagueava pelas encostas das cidadezinhas encravadas no vale que margeava o rio, num entardecer dourado feito de bruma de areia misturado às luzes das casinhas da cidade, um filme se fez na minha cabeça: vejo a tal recepcionista da vinícola, com seu vestido vestal subindo a colina para a missa medieval no ponto mais alto da cidade, onde fica a igreja, instituição de poder (hoje, as instituições de poder ainda ocupam a posição mais alta dentro de uma cidade , mas rezam uma Bíblia feita de cifrões). A moça senta-se castamente na primeira fila e ouve um sermão a respeito de inclusão humanitária, igualdade entre irmãos, serviço ao próximo, etc. Sai de lá com a alma lavada, pronta para mais uma semana de bem-aventuranças. Assim são os seguidores e seus dogmas.
Tempestade de areia, embaçamento da visão, são os tempos em que estamos vivendo. Sonâmbulos atrás de um entorpecente que nos redima da falta de consciência de nos posicionarmos com lucidez.
Não sobra uma família intacta quando um de seus membros destrói a verdade contando mentiras. Nossa juventude está se formando na base de fake news compartilhadas pelo WhatsApp. A moça da vinícola é só mais um exemplo do julgamento preconceituoso e destrutivo.
Fico assustada com a falta de critérios éticos que pavimentam a estrada de muito marmanjo que tem à disposição acesso a informações de qualidade, ou, no mínimo, deveria ter experiência para discernir o verdadeiro do falso, o justo do injusto.
Que a poeira do obscurantismo não nuble a luz da nossa consciência e da nossa tão fragilizada, mas conquistada democracia.