O que é ser judia para você? pergunta, de supetão, uma amiga.
Uma pergunta cuja resposta é autografada por tantos antes de mim, mantida intacta por séculos, sendo eu apenas um fractal dessa continuidade.
Há que se ter muito cuidado em analisar a história de um povo que fez do seu legado sua resiliência.
Mas uma coisa da minha história eu tinha para falar.
Não existe a Lilian sem a Tzipora.
Explico: cada judeu ou judia recebe ao nascer um nome local e um espiritual. Dizem, na mística judaica, que o nome espiritual é soprado no ouvido dos pais assim que o bebê nasce.
Minha mãe já tinha o meu nome na mira.
Tzipora, passarinho em português. Nome dado em homenagem à irmã mais nova de minha avó.
Tzipora, ou Tzipil para os íntimos, era a filha caçula que ficou a guardiã dos pais, no vilarejo de Derechin na Bielorrússia – na época parte da Polônia- quando suas duas irmãs mais velhas, minha avó e tia-avó, vieram para o Brasil.
Meu bisavô era um escriba da Torah, as sagradas escrituras. Uma honraria.
Quando os nazistas começaram a invadir a cidade e levar os rolos da Torah de seu pai, Tzipora, com dezoito anos, não aguentou ver o sofrimento dele, impotente, humilhado, assistindo, dia após dia, os soldados levarem os livros para serem atirados ao fogo.
Intuía, com razão, que sua família não teria sossego. Antes de sua casa ser invadida novamente, Tzipora, querendo preservar a honra da sua família, queima todos os livros, ficando lá dentro até o fim. Melhor do que deixá-los nas mãos dos nazistas. Os pais desesperados em salvar a caçula entram na casa e todos morrem queimados.
Minha avó nunca se perdoou por ter deixado a irmã menor. Dizia: eu que deveria ter morrido, ela era tão jovem, uma vida pela frente, eu deveria ter ficado lá.
Nas rezas sagradas, no Yom Kipur, o dia do perdão- no momento mais comovente onde cantamos o Yizkor (que significa “que ele se lembre”) – a reza dos mortos, eu, tão pequenina ao lado da minha avó, que não saía da Sinagoga até o término do jejum, sentia tanto a sua dor. Olhava para ela, que segurava com delicadeza e timidez um lencinho branco de cambraia com renda, que guardava dentro da manga do casaquinho azul marinho, perto do pulso, fácil de puxar e segurar o livro de reza ao mesmo tempo. Um gesto delicado. Ia enxugando discretamente as lágrimas de toda uma família vítima de extermínio. Eu passava meu braço pelo dela como se aquele laço nos fortalecesse para todos os obstáculos que tivemos ou ainda teríamos. Sabia tudo o que ela pensava e não falava.
Quem sobrevivia, sentia culpa. As ambiguidades rondavam nossas vidas.
Quando minha avó morreu, única coisa que pedi de recordação foi seu lencinho rendado que continha todas as lágrimas das minhas matriarcas.
Essa é a marca que trago desde meu primeiro respiro.
Não sei exatamente o que é ser judia, porque não sei o que é não ser judia.