Animadíssimas com o passeio de barco pelas doces águas do rio Tapajós, eu e minha amiga Silvia nos surpreendíamos a cada instante com a beleza e a exuberância da Amazônia, em Alter do Chão, no Pará.
Ao chegarmos ao rio Arapiuns, tive certeza de que não haveria no nosso planeta algo similar: uma praia feita de uma areia fina e clara, que é formada só na época das secas, emoldurando uma imensidão de água doce.
Eu me sentia segura no frágil barquinho metálico que atracava na areia. A calma do rio me apaziguava.
O sol brilhava forte. O almoço foi servido por uma família ribeirinha, e estava celestial. Porções imensas de tambaqui assado na brasa que derretiam na boca.
Depois do almoço, passeamos pela comunidade que produz em palha cestos e adereços coloridos tingidos com sementes nativas. Olhávamos as novidades locais com o encantamento de crianças curiosas.
Embarcamos novamente rumo a outra praia que ficava a uma hora de distância para vermos o pôr do sol. No último momento, um casal pediu carona.
De repente, o céu ficou negro e as águas plácidas se revolviam em ondas gigantescas ao nosso redor.
A embarcação onde estávamos, eu e mais nove pessoas, subia e descia com as ondas parecendo um barquinho de papel. A força das batidas na água era tão grande que nos machucamos pra valer. Fui para a parte traseira do barco pra ver se me acomodava melhor, mas pouco mudou.
O barco voava na turbulência tentando driblar o destino do tempo.
Tudo em vão porque ele teve que parar e esperar as ondas amansarem.
Diante daquele cenário aterrorizante, o barqueiro de olhos arregalados se limitou a responder a única pergunta que todos fazíamos:
“Até quando vamos ficar aqui?”.
“Não sei, até melhorar o tempo”.
Estávamos encharcados. O vento jogava água como rajadas nos nossos corpos doloridos.
Ao avistarmos uma praia distante, aparentemente deserta, Silvia perguntou ao homem que pediu carona, e que parecia o único sereno no grupo:
“Por que não atracamos naquela praia e passamos a noite lá?”.
O moço nos explicou que o melhor era ficar onde estávamos. Se pegássemos as ondas de lado, elas poderiam virar o barco. E avançar de frente, era impossível.
Duas moças vomitavam muito. Um senhor passou mal. O jovem guia rastafari, que havia me contado há poucas horas sobre sua braveza em guiar turistas em Alto Paraíso de Goiás, estava sentado no chão do barco, escondido atrás de uma canga estendida como num varal, para não ser chamado a ajudar sob hipótese alguma.
A certa altura, pedi o colete salva-vidas, mais por frio do que por esperar salvação. Os coletes estavam unidos e amarrados com um nó que ninguém conseguia desatar. Até que a moça magrinha com uma tatuagem de serpente percorrendo todo seu braço, e que não tinha aberto a boca até então, puxa daqui, puxa dali e consegue soltar. Todos correm para pegar os coletes. Inclusive o barqueiro que, em seguida, faz o sinal da cruz. O que aumenta o meu desespero.
Pergunto se ele tinha contato com a base via rádio. Ele balança a cabeça negativamente. Arrisco a segunda pergunta:
“Tem luz no barco para sinalizar?”.
“Não”
“Tem sirene?”.
“Não”
Quase fiz o sinal da cruz com ele.
Por duas horas e meia ficamos chacoalhando no rio revolto. A única comunicação era quando tinha sinal de WhatsApp e ele garantia que ainda não tinha como cruzar para o outro lado.
-Mas não podem mandar um barco maior para cá?
Não, garantiu o barqueiro que ele não chegaria.
A âncora que fora jogada por nosso carona, já não fincava mais na areia. O barqueiro pediu para pegarmos mais corda na parte traseira do barco para ampliar a da âncora que já não era suficiente.
Nenhum homem ajudou em nada o nosso carona salvador. Precisei pedir: algum de vocês poderia ajudá-lo? É preciso alguém forte segurando suas pernas para ele não voar pela frente.
Uma senhora mineira e simpática com a qual conversei bastante em terra, não parava de irradiar o que acontecia como se tivesse que fazer essa reportagem a todos nós que estávamos lá, e, de quebra, dar uma apavoradinha na galera, deixando bem claro que não era possível não ter contato com a base.
Outra, nos filmava com seu celular e apontava o flash para nossos olhos. Um arrepio me passou pela coluna. Isso seria um documento de quem estava lá, caso naufragássemos?
Duas horas e trinta minutos depois, num breu total, 2 barquinhos que estavam próximos e esperando o tempo melhorar, avisam que irão atravessar rumo à Marina. O aviso era no grito mesmo.
Nosso salvador nos explica como será.
Eu tentava não entrar em pânico olhando para o céu negro com relampejos e a fina chuva contínua.
O barqueiro pediu para alguém lá atrás verificar se tinha água dentro do barco, e gasolina suficiente. Eu tremia sem parar de frio e de medo.
Um pensamento me acompanhou todo o tempo: águas calmas não fazem bons marinheiros.
O barqueiro faz o sinal da cruz mais uma vez, e começa a travessia de 45 desesperados minutos. Todas as emoções emergidas chacoalhando junto com o mar e vento.
Silvia agarrou meu braço com tanta força que um pensamento hilário teve chance de chegar: se eu sobreviver, ficarei roxa pra sempre.
De olhos fechados, pensava em todos os que eu amava e só agradecia e visualizava estar salva no final. Eu queria estar viva!
A mulher do salvador não deu conta e começou a panicar, ele pedindo com a voz um pouco alterada que ela ficasse calma. Mas tava difícil de verdade. Sem luz, seguímos velozmente até o momento em que uma onda gigante nos jogou com tanta força que perdemos a direção. E as luzes, nossa única esperança, lá no horizonte, sumiram. Eu agarrei a perna da minha amiga e disse: fodeu.
Estávamos perdidos. Tínhamos apenas a luz de um celular ligada, o barco batendo alto, muito alto, todos apavorados agarrados onde dava, inclusive nosso salvador, pela primeira vez vi medo nos seus olhos.
Se tivesse qualquer banco de areia ou outro barco perdido, já era. O barqueiro, em pé no banco, com a mão protegendo os olhos, tentava enxergar, em vão. As ondas crescendo muito. O vento piorando. Tudo escuro. Agora, o barco estava totalmente à deriva. O pavor crescendo em todos nós. A moça magrinha não tirava os olhos arregalados do chão, o guia mais encolhido ainda, o senhor desesperado agarrado ao banco enquanto alguém lhe ensinava algum tipo de respiração para acalmar. Em silêncio, o barqueiro tentava achar onde estava a cidade, mas não tinha como ver a luz pelo tamanho das ondas à nossa frente. Um casal mais jovem estava ainda dominando seus temores.
Repentinamente, apareceu um barco maior iluminado. Não estava perto, mas orientou para onde virar em direção à Marina.
Fechei os olhos e rezei para que o pesadelo terminasse. Em 10 minutos, avistamos as luzes.
Agradeci pelos trabalhos espirituais que venho fazendo na minha caminhada. Provavelmente, sem eles não estaria serena ao chegar sã e salva no bangalô, tomar um banho quente e narrar tudo isso da forma como estou fazendo: como se fosse um filme de terror. Desses que se sai do cinema e se conversa sobre ele tomando um vinho na esquina para baixar a poeira das emoções.
O tempo pode mudar de uma hora para outra. De repente você se vê no meio de uma tempestade, no meio de uma noite assustadora, no meio de um rio muito longe da sua casa.
Tudo muda de repente, só não muda o lastro amoroso e espiritual que você tem ancorado dentro de você.
Parabéns. Delicioso texto.