Por um fio de cabelo, a vida da iraniana Mahsa Amini foi apagada. Um espancamento brutal pela “polícia dos bons costumes” a fez entrar em coma e morrer. Tinha vinte e dois anos. Morreu por uma mecha de cabelo que ficou de fora do véu islâmico. Nesse gesto de aniquilamento, que se escancara tal qual uma fratura exposta a um mundo entre perplexo e mudo, o lembrete escrito a sangue fresco para que todas as mulheres daquele país prestem atenção quando uma dentre elas não cobrir seus cabelos segundo a lei traduzida pelos interesses masculinos.
Não importa assassinar uma jovem recém-saída da adolescência. O que importa, de fato, é conter a força feminina. O que está na mira é apavorar as meninas que ainda sobrevivem, deixá-las enfraquecidas e acuadas, sem potência. Olhe o movimento e a força que essas meninas estão mobilizando no mundo todo! Tiram o véu e clamam por liberdade, cortando os cabelos em sinal de revolta e tristeza , em uma onda de sororidade mundo afora. Elas querem seu corpo de volta. Elas só querem viver para além do véu.
Como há sede de sangue feminino!
O fio da menstruação prenuncia a força vital fecundadora. Mas nem menstruar se deve mais. Não é moderno, dizem alguns “especialistas” em mulheres. Garantem que elas não precisam mais desse “incômodo”. O que marca o rito de passagem das meninas é um incômodo. Lembro-me que, na adolescência, perguntávamos umas às outras, em tom quase imperceptível: você está incomodada? Era um tema tabu. Hoje, para cessar o fluxo menstrual, as mulheres são entupidas de hormônios de última geração sem terem consciência de que estão abreviando a sua potência de fêmeas.
Pelo fio da sonda ligada ao braço escorre a anestesia para adormecer a parturiente, enquanto o anestesista, sadicamente usufruindo do frisson de ser pego em flagrante, mas acobertado pelo campo cirúrgico, esfrega seu membro no rosto da mulher fragilizada na mesa de parto, no seu momento de maior poder feminino.
No fio de tinta que sela o destino, uma juíza catarinense tentou impedir uma menina de onze anos, vítima de abusos sexuais, de realizar a retirada desse abuso, seu direito constitucional. Três a cada quatro casos de violência sexual no Brasil são contra menores de dezoito anos.
O fio da faca suja que faz as mulheres pobres morrerem numa quebrada qualquer, sobre melancólicas cobertas, num aborto clandestino.
O fio de um projétil de ódio que sai da arma de um homem ensandecido e mata uma mulher em nome da honra.
Por um fio de corda, as mulheres tidas como bruxas eram amarradas e lançadas num rio previamente bento para essa execução. Se afundassem, seriam absolvidas e puxadas para fora pela corda. Se boiassem, seriam executadas. Parece contraditório, mas a sofisticação da maldade é que, na esperança de serem içadas, morriam, pois a maioria não sabia nadar.
O fio que costura o prazer … a tenebrosa costura genital que mutila as mulheres deixando apenas um pequeno orifício por onde passa a urina e o ciclo menstrual, criando um habitat perfeito para infecções. Como são mutiladas muito jovens, as meninas creem que isso as purificam perante a lei divina. Resta a ambiguidade do desejo de amar e ser amada, a dor física e a humilhação. Como acréscimo da crueldade, a mutilação é realizada por mãos femininas. Mesmo com os crescentes protestos, estima-se que há mais de 200 milhões de mulheres mutiladas em pelo menos noventa países.
O fio pulsa…
Por um cordão que conduzirá à luz um novo ser, ali pulsa o início de tudo. No vigor desse cordão feminino reside a potência humana, o vir a ser. A graça divina que nos é concedida ao nascer, o fio de ouro. O melhor de cada um, em busca de um sentido maior na vida.
Cada mulher machucada é uma dimensão da nossa experiência humana subtraída em nós mesmos.