“Dicen que Tita era tan sensible que desde que estaba en el vientre de mi bisabuela lloraba y lloraba cuando esta picaba cebolla; su llanto era tan fuerte que Nacha, la cocinera de la casa, que era medio sorda, lo escuchaba sin esforzarse. Un día los sollozos fueron tan fuertes que provocaron que el parto se adelantara. Y sin que mi bisabuela pudiera decir ni pío, Tita arribó a este mundo prematuramente, sobre la mesa de la cocina, entre los olores de una sopa de fideos que se estaba cocinando, los del tomillo, el laurel, el cilantro, el de la leche hervida, el de los ajos y, por supuesto, el de la cebolla.”
Como água para chocolate – Laura Esquivel
Das memórias mais deliciosas da minha infância guardo as de minha avó, minha tia avó, minha mãe e outras mulheres da família cozinhando.
Minha avó materna, veio para o Brasil pelas mãos do meu avô que já havia chegado da Polônia. Dizem que ela demorou por não querer deixar a sua família e um amor, em sua terra natal. Mas meu avô – que era feito de profundos olhos azuis emoldurados de puro charme; um galã, como elas diziam – ganhou a parada.
Ela, então, deixou toda a família em Derekzin, na Rússia Branca, inclusive a irmã mais nova, morta antes de completar 20 anos – de quem eu levo o nome em Hebraico, Zipora, passarinho. Sua outra irmã, minha tia Golda – “doce golda”, como a minha mãe gostava de dizer – também veio para se casar aqui.
Bassia, minha avó, era introvertida, séria, elegante, muito observadora e muito culta. Amava os livros, talvez porque o seu pai fosse um Sofer – escriba importante em sua cidadezinha natal, aquele que escrevia a Tora.
O meu amor pelos livros foi por ela cultivado desde muito cedo, ou porque, simplesmente, eu a admirasse muito…
Desde pequena, eu gostava de decifrar o que não era dito. E a minha avó era um laboratório e tanto para isso. Ficava horas de cara fechada, para, de repente, soltar os lábios e começar a cozinhar. E eu adorava estar perto dela nessas horas.
Nas festas judaicas, especialmente no Pessach, ficava encantada com o sistema operacional veloz que ela adquiria e com o ritual que se seguia a cada prato, as combinações precisas e escalonadas. Sentávamos à mesa conforme nos era definido e esperávamos a cerimônia de sempre. Minha avó, com um avental curto por cima do vestido, nos servia o fumegante Knaidlach, com caldo de frango.
Naquelas horas, eu sabia que mesmo ela, normalmente um tanto carrancuda, estava feliz!
Comer sem fome era quase um mantra. Não havia negociação. Já ouviu falar da “culpa judaica”? Pois é, tenho quase certeza que foi a minha avó quem inventou isso. Se não foi, ela incentivou.
Quando eu era pequena, não conseguia fechar essa lógica: ter de comer tudo o que estivesse no prato porque havia muitas crianças famintas pelo mundo! E pensava: “como a minha comida (ou o resto dela) poderia salvar outras crianças tão distantes?”
Minha mãe, para a nossa sorte, havia herdado todos esses predicados gastronômicos.
Ela amava ter a casa cheia, e quem por lá passou, jamais se esquecerá!
Havia sempre um aroma convidativo no ar. Essa alegria de fazer para os outros me contagiava. Ficar na cozinha era um verdadeiro prazer. E poder ajudar era quase celestial. A colher de pau estendida com a mão de uma delas por baixo, a segurar, para não vazar, o caldo que escorria para dentro da boca, à espera, em coro suspenso, do seu veredito – “mais sal” ou “menos sal” – me colocava no Olimpo da culinária judaica.
Ficar na ponta dos pés para achar a gaveta onde estava algum mantimento era uma tarefa usualmente a mim reservada.
E, de vez em quando, depois de muito insistir, eu podia mexer alguma panela no fogo.
Imagino que essa cultura de fartura estava permeada, mesmo que em um nível subconsciente, de outra cultura: a da escassez que todos os judeus passaram.
Ficava sentada no chão da cozinha muitas vezes só escutando histórias costuradas pela tênue linha da fome de familiares ou amigos que nada tinham para comer quando aqui chegaram.
As festas judaicas eram uma alegria. Os homens serviam o vinho, rezavam, cantavam e as crianças, estimuladas por todos, seguiam cantando. Todas as mulheres na cozinha, como se estivessem guardando um grande segredo que só seria revelado no final do dia, na hora dos infindáveis pratos no jantar. Todos com uma métrica de ordem de chegada que faria o mais cartesiano matemático intrigado e que, entrava ano, saía ano, jamais se modificava.
Havia certo tipo de prato que tínhamos de esperar o ano todo para celebrar! Repetir um prato era o êxtase total! Elas todas em afinação harmônica nos olhavam juntas, e ao mesmo tempo, em sinal de aprovação! Por outro lado, recusar era um sacrilégio!
Enquanto escrevo, penso que essa alegria era quase uma catarse compensatória, retroativa, que alimentava a saudade dos parentes d’além mar.
Hoje, vejo a força dessa união feminina como uma forma de sabedoria, de preservar o mais sagrado entre elas. Era uma “confraria anônima”. Cozinhar em conjunto era reunir a magia de cada uma delas em torno de um segredo compartilhado.
Pedir uma receita era quase uma heresia! Elas até davam, mas podia apostar que jamais ficaria igual!
Agora, próximo ao Pessach, à Páscoa judaica, eu sinto a falta delas. As mãos velozes no manuseio dos ingredientes, já não estão mais aqui. As mãos que acendiam as velas também não. As risadas de cumplicidades dentro daquele ritual tão sério e que tanto me encantava já não existem. Tenho saudade daquelas mulheres que eram as verdadeiras alquimistas da família.
Sinto falta – como bem disse Mia Couto – “desse tempo e desse templo onde a intimidade tão bem resguardada desabrochava.” São aromas que ficaram na memória, mas não mais no paladar.
Se Pessach é a passagem de um lugar ao outro, do estreito ao mais amplo, faço deste próximo, a celebração das mulheres de minha família, que nos levaram por todos esses anos, através do amor à comida, a fazer a passagem da infância à maturidade.
Uma passagem recheada de memórias inesquecíveis.