Uma amiga francesa morou no Afeganistão no final dos anos 60, levada por um amor afegão que conheceu na França. O sonho dele era apresentá-la à sua família.
Ela contava que seu amor declamava poemas todos os dias. “Que diferença dos franceses”, suspirava ao comparar a cultura de ambos. Fez as malas e partiu para viver uma história maravilhosa.
Amava as cores de Cabul, a música nos lugares públicos, as roupas coloridas das mulheres, a alegria do povo, havia certa pureza no ar, uma ingenuidade tocante. Considerou começar lá uma vida nova. Largaria os estudos de ciências políticas em Paris e ficaria em Cabul com seu grande amor. Lá, poderia cursar uma boa universidade, o que enriqueceria o seu currículo.
Um dia entrou em uma reunião de homens à procura de seu amado. Ela não o via há dias. Os homens ficaram espantados com tamanha ousadia. O mais velho a mediu de cima abaixo, o que ela entendeu como um convite para se retirar imediatamente. Mesmo assim, vislumbrou um olhar de respeito pela coragem que teve. Achou que, por isso, o líder do grupo a chamaria para conversar. Mas não. Ele evitava o contato.
Quando seu amor reapareceu, ele parou de declamar poesias para ela, não mais a acordava com uma flor e um poema, não dormiam mais juntos, mudou a forma de tratá-la e chegou a dizer que sua insolência ao entrar na reunião dos homens havia passado do limite. De nada adiantou explicar que estava preocupada, que não o via há dias, não ouvia seus poemas nem escutava suas músicas.
Tentou achar uma explicação com algum membro da família, mas as mulheres sorriam e não diziam nada.
Entrara naquela sala sem pensar e, quando se deu conta, era tarde demais. Não foi perdoada. Tentou de tudo. O que não havia imaginado é que se tornaria refém daquela situação.
Daquele dia em diante, seus ouvidos ficaram mais apurados e o coração mais apertado.
Passou a ouvir os gritos das mulheres sendo espancadas. Todos faziam ouvidos moucos a esses gritos. Ela ouvia, mas não comentava nada.
Tentou falar com as irmãs do namorado. Elas sempre foram muito prestativas. Mostraram-se cuidadosas e solícitas, quase íntimas e confiáveis. Ficavam no pátio repleto de árvores frutíferas ao som da música local e tomavam um delicioso chá de rosas que faziam especialmente para ela. Diziam que era para acalmar os espíritos que faziam longas viagens. Sentavam feito crianças à espera das histórias de suas viagens pelo mundo e riam das aventuras amorosas, tampando a boca com as mãos. Levaram – na para passear pela cidade e mostraram lugares interessantes. Apresentaram suas amigas e a introduziram nas rodas sociais. Em um desses passeios, ela perguntou:
– Vocês escutam mulheres chorando à noite?
E a resposta quase em uníssono foi:
– Não!
Ela não entendia como mulheres tão incríveis não podiam “escutar” suas semelhantes. Qual era o risco?
Seu amor, tão delicado, parecia ter se transformado em outro homem. Ele também era submisso àquela situação.
Uma coisa que me tocou profundamente foi quando ela revelou:
– E o pior é que eu também fui ficando surda para os gritos das mulheres. Nunca vou me perdoar por isso. Gostava tanto dele, tanto das músicas e das poesias, dos bons tratos, que deixei os gritos em algum lugar abafado dentro de mim.
Talvez por isso ela trabalhe hoje na Unesco, resgatando a autoestima em grupos femininos pelo mundo.
Agora, após ver a tragédia que se derrama mais uma vez sobre as mulheres afegãs, me pergunto: onde fica esse grito abafado?
Por que as mulheres são tão perigosas para esses homens que precisam interpretar uma “lei divina” escrita por mãos mortais, que quer literalmente apagá-las? Por que querem apagá-las? Porque elas estão sendo apagadas.
As vitrines de roupas femininas estão sendo pintadas de tinta branca, o resto já sabemos. A burca é só o início da invisibilidade e da falta de identidade. Pouco a pouco elas serão esquecidas e nós não falaremos mais sobre isso.
Esse é o intuito do opressor. Criar uma barreira física e psicológica intransponível. Ninguém entra, ninguém sai. E assim vai transformando a realidade numa bruma cruel até não restar mais nada do que havia. A mulher desaparece, física e psicologicamente.
E não é só lá, não. O coro emudecido continua. Estamos assistindo a tudo isso aqui também.
Há pouco tempo, uma menina indígena de onze anos da etnia Guarani Kaiowá, da aldeia Bororo no MTS, foi arremessada de um penhasco de vinte metros de altura, após ter sido estuprada e embebedada.
Cinco dos estupradores foram pegos, três adolescentes e dois adultos, incluindo o tio da menina que já vinha abusando dela há tempos. Onde está o grito dessa criança? Ninguém ouviu. Ninguém quer ouvir.
No Brasil, a cada onze minutos uma mulher é violentada. A cada duas horas, uma mulher é assassinada.
A vida continua, dizem. Qual vida? O que nós estamos fazendo? Ou melhor, o que não estamos fazendo? O mundo, mais uma vez silenciou.
Eu me sinto mais do que desolada, fracassada por não poder acudir esses gritos.
Elie Wiesel fala: “Tome partido, neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. Silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado.”
Vivemos em um mundo que ensurdece frente aos gritos abafados das mulheres.
Somos testemunhas do nosso silêncio diante do torturador.
Não nos enganemos acreditando que só acontece no Oriente, aqui no Ocidente isso também está tirando nossa identidade.
Nossa burca é mais pesada do que imaginamos. Ela é moral e nós escolhemos vesti-la.
Nota do editor: essa crônica foi escrita por ocasião da morte de uma menina yanomami de 12 anos de idade que teria sido estuprada e morta por garimpeiros em Roraima no início de 2022. Na mesma semana, no Afeganistão, o Talibã proibiu as mulheres de saírem às ruas sem estarem cobertas. E essa é apenas um das normas que restringem a participação das mulheres na vida pública do país. Quem está ouvindo os gritos?