Sento-me no banco de madeira e escuto os soluços da viúva à minha frente. O canto litúrgico ecoa na nave. Meus olhos fixam o teto onde leio: sacrificium laudis mater christi – ora pro nobis. Alguém lá em cima ora por nós. Aqui embaixo, o sacerdote pede donativos.
Ao meu lado, uma moça abre a carteira e tira uma nota de cinco reais. Olha melhor, devolve, retira uma de dez e volta com a de cinco. Achei engraçado. Fiquei me imaginando dentro daquele cérebro.
“Cinco reais? Você é uma ingrata! Eu faço tanto por você! Quer um destino semelhante ao do falecido? Procura melhor aí nessa carteira porque daqui estou vendo uma notinha maior”.
Na morte, onde a sensibilidade da ausência e da falta que será sentida está mais aflorada, culpa e benevolência se aproximam. O telefonema que não dei, o convite para o cinema que recusei, a palavra que deixei de falar, a que falei em demasia, aquele aniversário que não fui, a briga desnecessária, como se brigar fosse necessário alguma vez.
A consciência da brevidade da vida é um dos raros momentos que nos faz ressonantes à dor do outro e nos dá a dimensão de pertencimento.
Pertencimento é um desejo que nos move o tempo todo. Pertencer a algo, a alguém, a um grupo e nos sentirmos de algum modo protegidos e reconhecidos. Não de forma narcísica, mas naquilo que nos toca a essência e nos faz chegar a uma oitava superior.
Nas sociedades arcaicas, o pertencimento estava ligado ao cumprimento de rituais, tarefas e missões, signos importantes que faziam todo o sentido na dinâmica daqueles grupos. Na sociedade atual, tudo isso se pulverizou e muitas vezes inventamos nossas próprias formas de pertencimento.
Quantas pessoas parecem zumbis seguindo algum mestre ou ritual sem terem o tempo e a tranquilidade necessários para avaliar se esse é mesmo o melhor caminho a seguir. Caminhos mal trilhados, difíceis ou até inapropriados podem nos ensinar muito no percurso da nossa vida, mas existem outros cujas sequelas podem ser desastrosas.
O que realmente é importante, afinal?
Não falo de rituais dogmáticos, mas daquilo que nossa alma tem fome.
Dias desses conversava sobre religião com um grupo formado por um casal budista, um casal judeu, um católico praticante e uma moça que dizia em alto e bom som que Deus não existia. Para ela, religião era uma prisão, nós estávamos todos enfeitiçados e, por isso éramos facilmente manipuláveis. Os mais crentes protestaram.
Confesso que concordei com ela em muitos pontos, mas entendo a presença divina de uma forma diferente. Tive experiências em que não havia como negar a presença de Deus.
Houve um momento em que senti que a moça usava seu ceticismo com o mesmo fervor que os fundamentalistas usam seus dogmas religiosos. O ceticismo como religião.
Certa vez ouvi de um rabino progressista:
– Onde mora o divino para vocês? O que é o divino? Será que só entramos em contato com o sagrado quando rezamos? E quando brigamos? E quando fazemos as pazes? A ciência e a natureza não estão na transmissão do divino? E a arte?
Essa fala me fez pensar: do que, de fato, nossa alma tem fome? Como alimentar essa fome do sagrado?
Dessa resposta depende nossa libertação do eterno abrir e fechar a carteira em troca de favores celestiais.