A crise do novo coronavírus, da qual ainda não sabemos bem qual será o desdobramento, escancarou a nossa pobreza no presente. Tanto a pobreza dos ricos quanto a dos pobres.
Dos ricos porque estamos presos à uma situação que nos entristece por perceber a condição precária em que o outro vive. Apesar desse incômodo que sentimos, poucos somos os que fazem algo para que haja uma mudança radical que aproxime as pontas sociais.
E a condição dos pobres ficou muito mais clara na pandemia. Pessoas que não têm a opção de fazer isolamento social, por não terem uma fonte de renda estável ou pelo modo de habitação precária a que estão condenadas, em casas de um ou dois cômodos onde vivem muitas pessoas. E podemos constatar com vergonha que deixamos chegar aonde chegou porque fingimos que não era conosco.
Neste momento de pandemia, tenho visto e participado de organizações de captação e distribuição de auxílio junto a comunidades necessitadas e moradores de rua. Nunca presenciei nada igual. Acho até mesmo que nossa geração não viveu nada assim. E me pergunto: e se essas ações se prolongassem enquanto for necessário?
Enquanto não temos condições políticas para reequilibrar, com ações de Estado, essas pontas tão distantes da nossa sociedade, vamos aproveitar o momento, que traz uma oportunidade para evoluirmos em solidariedade.
Temos escolhido não perceber a miséria, e assim ela não nos comove, ou seja, não nos mobiliza a ponto de agirmos diante do problema do outro. Temos outras prioridades. Só que não dá mais. Não é possível passarmos por tudo isso que estamos passando e continuarmos a achar que é cada um por si.
Como bem diz Renato Janine Ribeiro: A humanidade é uma conquista recente. Uma humanidade ética, de direitos iguais para todos. Ainda que, até agora, no século 21, isso esteja no plano da utopia. Muitas vezes, o contato mais próximo que temos com os menos favorecidos é com as pessoas que trabalham em nossas casas. Já pensou que até ontem tínhamos elevadores de serviço? Sim, eu sei, ainda temos, mas tiveram que editar uma lei para que a gente sentisse um pouco de vergonha. Para bom entendedor, a plaquinha de “elevador de serviço” contém um subtexto: é para lá que os mais pobres, os empregados, devem se dirigir.
Esses dias eu me peguei me demitindo da minha própria casa. A quantidade de coisas a limpar, das quais, diga-se de passagem, não consigo resolver metade, me levaram a refletir sobre o salário injusto das empregadas domésticas. Muito injusto. Elas fazem absolutamente tudo e ainda têm que chegar na casa delas e fazer tudo de novo. E, no dia seguinte, lá estão elas nas nossas casas cuidando de tudo com toda a dedicação.
Todas essas “novidades” são uma chance para apurarmos o olhar para o outro. E escolhermos que tipo de humanos para essa humanidade queremos ser.
Tenho me surpreendido com nossa resiliência. Quantos de nós estão se reinventando, fazendo do desafio uma nova possibilidade. Restaurantes que passam a entregar seus pratos, mulheres costurando máscaras enquanto não podem voltar a sua fonte habitual de renda como domésticas -porque sim, tem patrão que deixou de pagar suas empregadas. E quem está passando fome, sem o mínimo, faz como? Não há “live” que ensine a sobreviver com a barriga vazia. Os líderes das comunidades têm conseguido amenizar os efeitos do vírus sobre a fome, mostrando o poder da organização e da solidariedade. Também tenho visto iniciativas que partem dos mais privilegiados que me enchem de esperança. Isso não pode acabar. É uma guerra injusta. Não só a do vírus, que deve passar, mas a da miséria.
Imagine se cada grupo de vinte pessoas próximas a você se juntassem e escolhessem uma comunidade para alimentar, doando duas cestas básicas por mês cada uma. Agora, estenda isso para uma escala municipal e veja o resultado que teremos. Uma contribuição humana, não vinculada a nenhuma religião, algo que você oferece sem pedir nada em troca, muito menos o reino do céus.
Duas cestas básicas não fazem muita diferença na vida de quem não tem fome. Mas muda radicalmente a vida de quem tem. Não nos cabe apenas esperar do governo, porque como bem diz Mujica: a política tem abandonado o humanismo.
Proponho uma questão para todos nós: o que esse vírus veio modificar na nossa aproximação com aqueles que evitávamos olhar?