Da janela da minha cozinha, observo uma festinha de crianças no prédio vizinho.
Ainda, não sei porque me assusto com a imbecilidade humana.
Um mar de babás agitadas precisando mostrar serviço e, para tanto, “grudam” nos pequenos, abafando-os com os seus excessos de zelo. Enfiam neles, goela abaixo, uma fileira do que me parecem ser salgadinhos de festa infantil.
As crianças abrem a boca mecanicamente para se livrar logo daquela mão insistente, e poder “brincar”(?) novamente.
Fico pensando em como será o corpo desses pequenos ao crescer, o físico, porque o emocional…
Primeiro, porque comer quando não se tem fome, quando não se tem desejo, mas é feito de desejo alheio – pior até, imposto – só pode conduzir a um único lugar: à obesidade. Enquanto as taxas americanas vem caindo, a obesidade infantil no Brasil vem crescendo.
Comer é um ato generoso, prazeroso e, acima de tudo, de plena atenção.
Não se come sem estar atento. Não se come assistindo TV ou jogando… apenas mecanicamente abrindo a boca para não dar trabalho.
Criança tem fome no seu tempo, mas adultos não percebem isso e as fazem de depósito de comida estocada – vai que daqui a 2 horas tem fome e acabou o salgadinho? Melhor já se previnir enfiando logo alguns para dentro da boca.
Observo ainda as babás sentadas com os seus celulares, disfarçando o mal-estar de não ter muito o que fazer ali. Mas ganham para isso e precisam mostrar serviço.
Observo três crianças em um escorregador minúsculo, de plástico – Barthes se contorceria, sob a terra. Os brinquedos são tão pequenos que mal dá para subir os pseudo degraus da escada e já tem de descer. Babás e mães atentas para a escorregada que não chega a 2 segundos, literalmente. O chão é de grama sintética, em um espaço que não ultrapassa os 40 m2. Não há espaço para correr, não há espaço para criar.
Me dói a alma só de pensar que tipo de criança se produz aí. Sim, produz mesmo, produção em série. Mães respondendo pelos filhos, se intrometendo em suas brincadeiras, alarmando-os sobre os cuidados que devem tomar para não se machucarem. E gritam de longe: “cuidado, fulano, você pode cair!!” Cair de onde, criatura?! De meio metro de altura, no chão de plástico?
Dias desses, soube por uma amiga que “mães muito dinâmicas mandaram retirar o gira-gira de um clube paulistano”. Devaneei imaginando a cena: o filhinho mimado cuja mãe, executiva, mal tem tempo para ele, cai do gira-gira por CULPA de um coleguinha. Óbvio, como ousa outro garoto ser mais forte do que o meu rebento? Onde já se viu algo tão perigoso como um gira-gira ser conduzido por outra criança?? Onde estavam as babas de plantão!?
Não precisa fazer nem o primeiro ano de psicologia (por correspondência!) para saber qual personalidade estamos formando nessa dinâmica. Eu me pergunto, ou melhor te pergunto: o que significa tudo isso, senão um retrocesso? Meus filhos brincavam livremente, nas árvores, nas bikes, nos campos de futebol, suas festas preferidas.
Voltavam da escola com tanta areia que eu me perguntava se eles, na escola, a repunham todos os dias, rsss
Era o tempo de pipas na praia. Pipas que levavam dias confeccionando. Pensando, utilizando o cérebro na estratégia da brincadeira. Correndo, se sujando.
Saber do espaço que o seu corpo ocupava, correr ao vento de costas, confiando no que está lá, onde não há visibilidade total.
Desciam rampas com caixas de papelão, ficavam horas nessa brincadeira. Tinham contato com os bichos e aprendiam, na experiência, em como se manter mais perto ou mais distante de cada um.
Adoravam brincar na chuva e, depois, tomar um delicioso banho quente! Ou então, na ausência da mesma, banhos de esguicho. Eram outras épocas, tirando a questão da água, do desperdício consciente, que hoje está tão presente. Mas era divertidíssimo!
Várias vezes, quando eu trabalhava na creche do Einstein, tinha de interromper o trabalho para acudir algum deles porque havia se machucado. E daí? Alguns pontos na testa, no braço? Com certeza, nenhum na alma.
Hoje, são adultos livres, sabem escolher, pensam com lógica, enfrentam qualquer tipo de desafio. Porque a primeira que nos ensina é a natureza. E ela está longe das crianças. Ela, que tanto nos ensinava, ficou perigosa! Nada se cria, nem mais os brinquedos; estes, em sua maioria, já vem prontos.
Atualmente, como as escolas já não permitem às crianças desenhar as suas próprias “amarelinhas”, sabe o que acontece? Elas não se interessam mais. Sabe por que? Não, não é porque os jogos eletrônicos são mais apelativos, mas, sim, porque a amarelinha tem uma função lúdica, que se inicia com o traçado do giz no chão, em proporção ao tamanho da criança. Um pé na linha e está fora da brincadeira. Essa é a norma, esse é o divertimento do jogo. E as regras são geridas por e entre elas. Não por adultos que acham que, ao pintarem uma amarelinha supermoderna, as estão beneficiando. Não, não estão.
Os adultos estão infantilizados e as crianças estão fóbicas por este excesso de afeto distorcido em afetação. Os adultos sufocam os seus próprios filhos com os seus medos. Tenho muito receio de que nós, do alto da nossa arrogância ao achar que sabemos tudo, estejamos privando o novo, a alegria genuína que deveria se manifestar nas crianças.
Gritinhos em salões de festa infantil (tenho pavor desses lugares) não são manifestação de alegria, e, sim, de excitação deslocada. Criança livre pode até gritar, mas é nítida a diferença do grito festivo, de prazer, deste de histeria coletiva aprisionada.
Uma coisa boa me fez rir um pouco. Thor, não o filho de Eike Batista, mas o Senhor dos Trovões na mitologia nórdica, se faz notar. Algumas crianças se animam? Eu torço para que elas consigam “escapar” e brincar na provável chuva que se prenuncia. Entretanto, rapidamente, elas são “eficientemente” retiradas do recinto.
Um filme da minha adolescência me veem à cabeça, “Bless the Beast and Children”, de Stanley Kramer, cuja canção, na voz dos irmãos Carpenters, é inesquecível: “bless the beast and the children for in this world; they have no voice; they have no choice”. Muito triste.