Acertem seus relógios para menos 30 minutos, disse a elegante aereomoça ( já queríamos o mesmo Kimono que ela estava usando) da Bangkok Airlines.
Sim, 30 minutos a menos de fuso horário de Bangkok para Yangon!
Ao chegarmos em Myanmar, de fato sentimos vontade de ajustar nossos relógios ( que por sinal nenhuma das duas carregou nessa viagem, causando algumas situaçōes cômicas) para menos 50 anos!
A sensação era de estarmos atravessando um túnel do tempo.
Nosso guia Aung, simpático e delicado como a grande maioria do povo, já nos esperava com sua típica saia longa masculina; Longy, de tecidinho xadrez para os homens e floral para as mulheres, parecendo uma canga, e que confere a todos um ar elegante e sensual.
No caminho para o Strand Hotel, esse merece um capítulo à parte, foi nos explicando situaçōes corriqueiras da cidade.
E claro, com muita delicadeza, ia desviando o assunto de todas nossas investidas com relação ao governo militar e suas decorrências.
Passados 5 dias e com mais confiança, Aung foi aos poucos comentando sobre a situação política do seu país, o qual deixou somente uma única vez ao longo de seus 32 anos, a convite, e como guia de um casal suiço, por 15 dias.
Chegou a pedir que nossas perguntas fossem mantidas sempre dentro do veículo, um carro mal conservado, com mais de 11 anos de uso e comprado há pouco tempo no valor de US$27.000,00.
Interessante como queremos sempre entender e encaixar algo novo com o olhar do que já conhecemos, e Myanmar nos ensinou a relaxar e realmente abrir espaço para algo que jamais vimos em nossas vidas, quase indescritível.
Sons constantes de buzinas estridentes, eles não usam o espelhinho retrovisor!
Aromas desconhecidos esparramados no mercado ao ar livre; oraçōes islâmicas expectoradas por alto – falantes; jovens te puxando para comprar algo em suas barraquinhas; a meiguice crescente das mulheres lindas segurando suavemente sua mão e te mostrando algo ou pedindo batons ou perfumes em troca de uma pulseira ou caixinha de laca ( não aceitam esmolas com toda dignidade) numa cena constante por toda Myanmar.
Crianças afetuosas vendendo seus sininhos, leques e colares de jade em 3 ou 4 idiomas que aprenderam com os turistas; estudantes com suas “longys” verdes, camisas impecávelmente brancas e bolsa/sacola de lã vermelha, voltando alegres da escola; mulheres super femininas banhando-se no rio; filas e filas de motoqueiros à espera de comprar gasolina mais barata vendida dentro de garrafas de plástico de água mineral nas barraquinhas ao longo das estradas.
Templos e Pagodas emergindo da terra numa cena de tirar o fôlego; carroças de bois; monges em trajes beterraba caminhando descalços pelas ruas em sinal de desapego; ingleses pilotando balōes; idosos, jovens e criancinhas usando a esbranquiçada pasta “Thanakha” como protetor solar geométricamente aplicada ao rosto ,conferindo um ar divertido!
Moças vendendo pequenos passáros e até corujinhas enfurnadas em minúsculas gaiolas de palha para serem libertadas pelo seu comprador (impossível não fazer a correlação com a vida delas).
Tudo isso misturado às brumas do amanhecer e a constante poeira vermelha que paira sobre as cidades, nos faz esquecer do estado ditatorial que domina esse povo.
Talvez por serem mais pacíficos que os ocidentais, ou mais conformados, ou mais espiritualizados ( isso também é um capítulo à parte, não a espiritualidade em si, mas a passividade sob a espiritualidade da pobreza) ficamos com a impressão de que a miséria por lá não aparece, embora a pobreza seja muito grande.
Obviamente, como todo governo militar,você olha em volta e não vê ( nem poderia ver) saída, em todos os sensos.
Aung nos diz que muitos adolescentes, se conseguem, deixam o país para estudar fora.E isso pode ser um agente transformador em um futuro próximo na política interna; tomara!
À noite, no Strand Hotel ( aquele mesmo do capítulo à parte) onde já hospedou Somerset Maugham e George Orwell, enquanto tentávamos lembrar desse tempo militar no Brasil, e por sermos jovens demais na época e pouca vivência politica, não tinhamos muitas referências , iamos portanto , atraves dessa falta , bebendo nosso vinho da Nova Zelândia, sem o compromisso de quem sentiu na pele a dor da repressão e conversando sobre temas que pareciam tão distantes de nós, mais uma vez…
Ia contando à Silvia, de uma época em minha vida lá pelos meus 19 anos, a mesma em que conjugava minha entrada na PUC, com um livro que ” caiu” em minhas mãos, Inventário de Cicatrizes, de Alex Polari.
Esse foi o gatilho para uma sucessão bastante obsessiva de leituras intermináveis que durou uns bons 2 anos, sobre muitos presos políticos na época da ditadura.
E por esses entrelaçamentos da vida, anos mais tarde, conheci um deles pessoalmente, preservarei seu nome aqui.
Mas lembro com muita nitidez que me causava até um certo constrangimento em vários momentos, em nossas conversas, a fragilidade, medo e a eterna desconfiança que esse homem vivia a todo momento.
Ele nunca mais teria paz na vida, mesmo sendo agora uma pessoa de/no ” poder”, essas eram suas palavras.
Lembrei-me agora ao escrever tudo isso do livro “Recordaçōes da Casa dos Mortos” de Dostoevsky, que também devorei nessa mesma época, e que fala muito o que meu amigo ex preso político me falava.
Fica impresso na pele, na alma , para sempre.
Iamos alinhando todas essas dolorosas histórias ao pouco que conseguimos perceber através da passividade e obediência desse povo maravilhoso.
O desejo humano mais genuíno é a liberdade, é nosso direito e bem maior, e devemos viver e jamais esquecer disso a cada instante de nossas vidas.
Os muros derrubados estão ai como provas, ao menos físicas…
De qualquer forma apesar de não nos agradar nenhum pouco a idéia de passarinhos poderem ser presos para serem libertados, e apesar de sabermos que ao comprar uma gaiolinha incentivamos essa atitude mais e mais, não resistimos à idéia mesmo que simbólicamente, de soltar esses passarinhos para que eles pudessem voar em liberdade!