Recentemente num curso sobre a Princesa Isabel, a historiadora que nos dava aula mostrou um slide com um leque feito pela própria princesa. Na ponta de cada vareta, o rosto pintado de algum membro da família.
Se o leque fosse da minha avó paterna, alguns retratos estariam decapitados. Ela nunca aceitou a separação da filha. Dizia que ela merecia ser melhor tratada pelo ex-marido. Enquanto tia Rosa seguia tranquilamente sua vida de desquitada, minha avó ainda esbravejava.
Como grande colecionadora das fotos da família que era, fez questão de recortar o rosto dele de todas as fotos em que aparecia. Era engraçado ver aquele corpanzil — meu tio era um homem grande, assemelhava-se ao Marlon Brando já mais velho –, abraçado à minha tia e com um buraco acima do corpo, onde seria a cabeça.
Ele era um homem muito culto, engenheiro, professor de filosofia, de história, um visionário. Lembro dele no final da vida dizendo: “todos os muros vão cair”. Algo impensável quinze anos antes da queda do muro de Berlim.
Minha avó, assim como a princesa Isabel, enterrou dois filhos: meu pai, assassinado, aos trinta e sete anos, e meu tio, de leucemia, aos sessenta. Também perdeu seu neto mais velho, aos trinta e um anos, num acidente aéreo que levou junto seus dois bisnetos que morreram pequenos. Apesar de tantas perdas, era uma mulher doce e afetiva que sorria com os olhos. Sua bondade era enternecedora. Tinha uma fé inabalável e muita sensibilidade. Era uma judia espírita, assim como muitos na família de meu pai.
Como se não bastasse, dormia com uma foto de Jesus Cristo sob o travesseiro (aí está meu álibi por ter frequentado as aulas de catecismo).
Já em idade avançada, diagnosticada com diabetes, morando na casa da filha, me pedia chocolates quando ia visitá-la. Assim que eu lhe entregava o pacote secreto, ela rapidamente enfiava um chocolate na boca e escondia a caixa sob o colchão como uma criança feliz, fazendo um gesto de silêncio com o indicador.
Escondia principalmente da Nizia a empregada que trabalhava na casa há mais de vinte anos e contava tudo para minha tia.
Vaidosa, já quase sem movimentos no corpo, fazia questão de ter as unhas feitas e pintadas toda semana.
Quando seu filho mais novo faleceu, ninguém teve coragem de lhe dar a notícia. Mesmo assim, no dia seguinte ela me disse baixinho: “eles acham que eu não sei, mas essa noite meu filho veio se despedir de mim. Sei que não verei mais seu sorriso lindo. Não nessa vida”. De fato, meu tio deixava um rastro de beleza e bondade por onde passava.
Minha avó sabia todos os números de telefones de cor e pedia para que alguém ligasse quando queria falar com os netos. Só depois de sua morte eu soube que ela era semianalfabeta. Isso me derrubou.
Meu avô, sempre muito solicito, estendia uma capa de proteção sobre a esposa. Agora percebo que, aquilo que eu julgava ser cuidado, era uma forma de dominação. Uma opressão sob o falso manto da proteção. Algo comum nos casais daquela época.
Ela mal podia atender ao telefone sem que ele corresse para a extensão. Na minha ingenuidade eu pensava que era vontade de falar comigo junto com ela. Veja só, meu olhar pueril. A verdade é que ele queria vigiar todos os telefonemas da mulher.
Lembro da minha mãe contando que quando iam à cidade comprar tecidos, que elas chamavam de fazendas, iam com horário cronometrado. Se houvesse algum atraso meu avô ficava muito bravo. Mesmo explicando que haviam perdido o horário de algum bonde, ele ficava carrancudo por um bom tempo.
Durante os cinquenta anos que estiveram casados só se chamavam entre si por dona Esther e seu Boris. Nem nós, os netos, falávamos senhor e senhora, eles pediam que os chamassem de “você”.
Vendo o leque da princesa Isabel no slide daquela aula, fiquei pensando em como nós mulheres fomos obrigadas a desenvolver habilidades para nos livrarmos da repressão às nossas potencialidades.
Outro dia, minha neta Alice fazia um leque de papel. No seu artefato havia desenhos de flores e passarinhos no lugar dos retratos de antepassados sisudos ou decapitados.
Quando ela gentilmente veio me abanar, senti um vento de esperança e alegria. Tomara que as novas gerações não carreguem o peso da tradição opressiva sobre as costas.