Na volta da aula no parque, conversava com meu professor, Bruno, sobre os excessos de medicação psiquiátrica. Comentávamos como muitas pessoas não percebiam que esse excesso as deixava anestesiadas, tanto das dores quanto dos amores. Mas já ouvi como justificativa que a solidão dói muito. “Seria essa a única solução?”, nos perguntávamos quando passamos por uma senhora sentada à sombra de uma árvore lendo placidamente um livro. Parecia ter em torno de oitenta anos, uma postura ereta e jovial, muito bem vestida e um sorriso no rosto.
Passei por ela, sorri, ela retribuiu, e eu disse: que delícia ver alguém lendo um livro com tanto prazer.
– “Tenho noventa anos e meu prazer pela leitura nunca diminuiu.”
– “Desculpe, noventa anos, a senhora falou?! Mas a senhora não parece nem oitenta!! Qual o seu segredo? Posso saber o nome do livro que a senhora está lendo?”
Ela ficou sem jeito. Disse que já havia lido esse livro e doado à biblioteca do parque. Agora pegou-o emprestado para reler.
– “Eu até coloquei uma contracapa”, disse num sorriso sem graça. “Mas é esse aqui: Sexo e afeto na 3a idade, de Ana Perwin Fraiman.”
– “Sem sexo nós podemos viver, mas sem afeto”, não.
Então contou que quando seu marido, com quem esteve casada por sessenta e dois anos, faleceu , seus filhos a levaram ao psiquiatra porque ela estava muito triste. “Sabe”, falou com olhos vivazes, “eu tomei aqueles antidepressivos e comecei a me sentir estranha, sem brilho, sem equilíbrio, sei lá, estranha mesmo. Não dá pra ficar feliz e saltitante quando se perde um companheiro de tanto tempo. Mas os filhos queriam resolver o problema que eu seria para eles.”
“Sabe o que fiz? Fui ao médico e falei: nessa mão eu tenho todos esses remédios, nessa outra, minha dose diária de vinho do Porto. Eu optei pelo vinho. Você acredita que depois da consulta ele me deu razão, até disse das propriedades do vinho do Porto. Peguei todas aquelas caixas, nem sei por que comprei tantas, e levei na AACD, onde uma vez por semana presto trabalho voluntário. Entreguei na mão dos enfermeiros porque não podemos deixar com qualquer pessoa, não é? Com certeza esses remédios terão um destino melhor e mais adequado. Pode ser que tenha alguém lá que, de fato, precise deles e não possa pagar.”
Eu estava hipnotizada pela sagacidade e agilidade verbal de Dona Odete. Me contou que há 30 anos faz diariamente aulas para 3ª idade na PUC. Que os filhos têm a vida deles, os netos moram fora do país e tem três bisnetos. Chamou os filhos de minhas crianças e riu, dizendo: “imagine, um tem setenta e um anos , o outro sessenta e oito, e a menor, sessenta! E eu ainda chamo todos de crianças”, risos.
Quando estávamos indo embora, ela disse: “muito obrigada por falarem comigo, hoje ninguém havia falado ainda. Às vezes meus filhos ficam três dias sem contato.”
Perguntei se eu poderia abraçá-la, disfarçando os olhos cheios de lágrimas. Ela ficou emocionada.
Saímos. Bruno, enxugava os olhos.
Fiquei pensando como chegamos ao ponto de descartar pessoas idosas, de não honrar a sabedoria de uma pessoa vivida, de não ter paciência porque estamos com coisas mais importantes a fazer. Como se uma coisa eliminasse a outra. Acho que a gente não percebe que desonramos a nós mesmos, cada vez que nos afastamos dos nossos anciãos.
Olhava para as raízes das árvores asfixiadas sob o concreto da modernidade, impossível não fazer um paralelo entre ambos. Nos frenéticos tempos “modernos” não há espaço para a vida que pulsa nos idosos, a maioria tem que se adaptar ao sufocamento do mundo cimentado sobre suas raízes. Perdemos todos, não tem como desenvolver nossa humanidade sem honrar nossa ancestralidade.