Fui assistir ao filme “Uma Nova Amiga”, de François Ozon. Sensível, verdadeiro e profundo, fiquei muito emocionada em várias cenas. Mas imagino que muitas pessoas não entenderam a mensagem ou não conseguiram ou puderam entender. Por desinformação real a respeito do tema, ou mesmo por dificuldade emocional em compreender essa outra – nova? – realidade.
Um conhecido, que também viu o filme, disse que gostaria que o diretor tivesse “interrompido e terminado o filme” em uma determinada cena, uns 30′ antes do final real. A meu ver, seria exatamente o que nosso inconsciente acomodado, o sossego dos padrões convencionais, gostaria. No entanto, isso feito claramente implicaria em não desmistificar uma verdade dos nossos tempos.
O roteiro se desenrola a partir do falecimento de Laura, amiga de infância de Claire. Alguns pontos são tocantes: esta amizade entre as meninas, as primeiras descobertas; depois, já adultas, os desejos reprimidos vividos na pele por Claire… Ela é uma mulher que se permitiu ir além do seu desconforto inicial, e se surpreender com a sua auto descoberta.
Voltando um pouco, Claire foi tomada de espanto ao ir visitar o (recém) viúvo de sua amiga e encontrá-lo dando mamadeira para o bebê recém-nascido… vestido de mulher! Não vou entrar na crítica do filme, nem tampouco enveredar pela análise mais aguçada de quais fatores recalcados, e claramente reprimidos, se expressavam a todo momento na dúbia orientação sexual de Claire. Mas quero tocar em um assunto polêmico e delicado o qual o diretor tange de forma singela e profunda: o crossdressing.
Crossdresser é qualquer pessoa, homem ou mulher, que gosta (se diverte, curte, brinca, tem prazer, enfim) de vestir as roupas que, socialmente, seriam do sexo oposto. Ou seja, homens vestem-se de mulher; mulheres vestem-se de homens. Este fetiche, esta fantasia, independe da orientação sexual da pessoa. Mas me parece claro que quem é crossdresser não quer renegar o seu sexo e o seu desejo de nascença. Afinal, se quisesse mesmo, não seria crossdresser: iria optar logo pela readequação de gênero. Justamente por não querer abandonar a sua identidade “original” é que a pessoa acaba tendo o crossdressing como algo secreto, oculto, privado, particular. Do contrário, teria de explicar para todo o seu universo de relações – familiares, pessoais, profissionais – que aquilo é apenas uma diversão, uma fantasia. E eu pergunto: no mundo de hoje? Na nossa sociedade, que é extremamente machista, preconceituosa, retrógrada? Não, melhor não…
E foi o olhar muito sensível e delicado do diretor neste sentido que me impulsionou a prosseguir em suspense e emocionada com o desenrolar da trama. O carinho de Virgina (a crossdresser que era David, o viúvo de Laura) para com Claire, o segredo e a cumplicidade entre ambas é que as uniu.
Claro, Ozon coloca ainda outros elementos na história que a tornam ainda mais intrigante, como, por exemplo, o casamento heterossexual de Claire. Esta relação é totalmente “adequada”, morna, pouco interessante e sem grandes descobertas, ingredientes que impulsionaram a personagem a ir em sua dimensão mais profunda. O que me tocou muito é justamente saber o quão real e sofrido é viver nessa dupla realidade/identidade.
Tenho um amigo que me contou há muito pouco tempo que era crossdresser. Eu, confesso, não sabia, tampouco tinha conhecimento do que se tratava o crossdressing. Ele foi se abrindo e me contando detalhes de um universo que me era absolutamente desconhecido – e olha que sou muito curiosa. Júlio, este meu amigo crossdresser, quando mulher é Carla e, em ambos os estados, masculino ou feminino, gosta de mulheres. Sempre! Ele é convictamente heterossexual – como David/Virgina!
Esse é o primeiro erro que o público que assiste ao filme comete. Percebi, na saída do cinema, que algumas pessoas comentavam, “mas o personagem Virgínia e um travesti”, ou então, “não é possível um homem que gosta de se vestir de mulher não ser homossexual”.
Mas a dor do crossdresser é exatamente essa: não ser homossexual e ao mesmo tempo ter paixão pela estética e pelo universo feminino. Um crossdresser masculino ama tanto as mulheres ao ponto de, na ausência delas, criar a sua própria versão, seu ideal de mulher. O crossdressing é um hobby que, como qualquer outro, é praticado só, ou com os amigos e por períodos variados. Júlio me contou que quando seus relacionamentos amorosos (sempre com mulheres) estão bem, a sua doce Carla fica bem guardada em uma caixinha no porão. Mas se o namoro esfria, ou mesmo nas vezes em que ficou solteiro, Carla era uma companhia incrível. Ele se divertia, dentro de casa, com a produção, com os detalhes, com o gestual. E curtia se fotografar assim… Montada, olha-se no espelho e o que vê e lhe encanta é uma figura feminina!
Pela internet, conheceu outros crossdresers e formaram um clube, o Brazilian Crossdreser Club (tem site!), do qual hoje ele nem faz mais parte, por questões pessoais. Mas disse que as reuniões eram animadas! Um bando de homens maduros, elegantemente vestidos e maquiados, em seus saltos altos, sentavam no sofá na casa de um deles, para, whiskys na mão, ver o Timão jogar! Felizes! Divertindo-se, apenas, para, mais tarde, desmontar tudo e voltarem para as suas casas… Deste mesmo clube fez parte o cartunista Laerte, também crossdresser, que após revelar sua versão feminina (Sônia!), ganhou toda a mídia.
Foi quando o Brasil começou a entender o conceito de crossdressing, e a maneira como ele se difere do travestismo, do transsexualismo e das Drag Queens.
Júlio conta ainda que o seu grande sonho é sair à rua, ir ao shopping, mas “invisível”. “Lilian, não quero que me vejam como um ‘homem vestido de mulher’. Quero passar pelas pessoas e que elas simplesmente pensem ‘ali vai uma mulher muito elegante’, sem chamar a atenção de ninguém”, revela. E me disse mais, no que tange a sua dor: “se tivesse um comprimido que eu tomasse e deixasse de ser crossdresser, eu tomaria. A minha vida seria bem mais fácil. Mas nasci assim e vou morrer assim”, conclui.
Essa dor dele/dela, que é a mesma de Virginia no filme, vem desse achacamento que tantos de nós impomos todos os dias. Massacramos, apontamos, agredimos, julgamos, condenamos, excluímos pessoas, seres humanos extamente iguais a nós, apenas porque eles têm outras cores, outras preferências religiosas ou sexuais, outras classes sociais.
Estamos em 2015. Que tipo de seres humanos somos nós hoje, justamente agora que há tanta informação disponível? Sabemos definir que escolhas ou opções são as “corretas”? Quem nos deu esse poder?
Quando a verdade de cada pessoa é vivida na plenitude, ela expressa o melhor de n&oacut