Por volta dos meus 11 anos, no recreio do ginásio, uma amiga inteligente e persuasiva me chamou de lado e disse: Tenho que te mostrar algo que você irá adorar.
Era um livrinho de capa azul, em pelica, com arremates dourado. O texto e as ilustrações em papel bem fino e delicado.
Lembro da boa sensação em manuseá-lo. O tema versava sobre o fim do mundo e o surgimento de um novo Paraíso para os que se salvaram. Já na primeira página a ilustração de uma família feliz abraçada no Éden, agora a nova Terra, que dizia: E Deus enxugará tuas lágrimas, e não haverá mais sangue, nem suor, nem dor.
Pronto, em menos de 10 minutos eu aderi à causa. Ela me deu um livrinho em segredo e eu o guardei rapidamente na minha malinha de couro. Afinal, estudava em uma escola judaica. Bom senso eu tinha, ou assim eu achava.
Nas semanas seguintes, nos encontrávamos escondidas, eu e a amiga catequista, para grifar e decorar passagens de louvor.
As férias de inverno chegaram. Nosso destino familiar anual eram as montanhas de Campos do Jordão.
O hotel era um reduto da alta sociedade paulista, e após o jantar as famílias se reuniam em torno da lareira no salão principal, as damas para o chá digestivo, e charutos para os cavalheiros, o aroma da fumaça que permeava as conversas ao redor da Sala da Lareira está registrado até hoje na minha memória olfativa.
Eu tinha uma missão a ser cumprida: alertar as pessoas desavisadas para o iminente fim do mundo, ainda dava tempo de se salvarem, tinha absoluta convicção de que poderia ajudá-las. Eles poderiam ser os escolhidos entre tantos. O alerta maior que eu frisava era: observarmos cautelosamente nossos atos para não cairmos na iniquidade, pois — aí sim — não teríamos salvação. Essa era a palavra repetida enfaticamente por mim por achá-la imponente, mas não tinha a menor ideia do significado dela. Minha mãe falava em voz baixa para meu padrasto que não entendia o porquê de eu repeti-la com tanta veemência. Eu achava uma palavra necessária.
E lá ia eu de família em família.
Uma menina bonitinha e magrinha. Bem cuidada e bem-vestida, cabelos presos em um bem-feito rabo-de-cavalo arrematado com um laço de fita, só podia trazer boas notícias.
Me aproximava delicadamente de cada grupo familiar e perguntava se poderia ler uma frase de louvor!
Todos sorriam e aderiam à causa salvadora.
Eu muito compenetrada me punha a ler, em pé, o livrinho da capa azul, na frente da família e a oferecer interpretação caso fosse necessário.
Um tapinha delicado na cabeça era o sinal de que a família já estava quase salva e tinha entendido o recado. E eu poderia continuar a peregrinação pelas alas do hotel até chegar onde as crianças brincavam. Lá, eu deixava o sacerdócio de lado e voltava a brincar.
Dias atrás, uma amiga que passava por uma situação de turbulência familiar me pediu uma opinião de como proceder num ponto específico. Ela sabia de algo que era de extrema importância alertar alguns membros da família. Eles mesmos desconfiavam de algo estranho, e a indagaram sobre a opinião dela na questão.
Mas ela estava temerosa de ser a mensageira do rei que leva a verdade, e é aniquilada no final.
Eu pensei no provérbio latino que diz: “Ne nuntium necare”, ou seja: “Não mate o mensageiro”.
E ela me pergunta, devo ou não falar?
E o breve momento da minha adolescência pautada pelo livrinho azul acendeu em minha memória. E eu disse à ela: Acho uma situação delicada, porque existem pessoas das quais precisamos nos aproximar como se fôssemos testemunhas de jeová. Bate-se na porta e pergunta-se: gostaria que eu lesse uma passagem inspiracional?
Ou seja, tem que perscrutar a situação toda. Entender o que não está sendo dito, e ter a certeza de que a pessoa — de fato — quer uma opinião alheia.
Já vivi situações em que a pessoa me pediu uma opinião sobre o tema por ela vivido em aflição, e levei uma portada na cara.
Nem sempre nossas convicções, que podem até ser reais, ajudam o outro que não quer ver ou quer mudar algo que pode ser doloroso.
Portanto, hoje eu imagino ter aprendido a lição daquela garota magrinha: Você oferece e fica na tua.
A testemunha de jeová que me habitou por alguns meses na minha adolescência ainda está dando sinais de vida.